A vizinha kriptonita

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Ai, ai, que telefone chato! Já vai! Alô! Oi Claudete, como vai? Menina, eu estou na correria aqui, viu? O Carlinhos vai chegar amanhã, aquele meu sobrinho de Florianópolis. Daí que estou colocando um monte de coisa em ordem e deixando tudo arrumado para aquela criatura não passar mal. Sabe, o garoto tem de tudo, asma, alergia de gato, de passarinho, toc, tique, depressão, bichice e o escambau a quatro.

Foi então que Margarete levantou-se da cama. Enquanto tricotava as novidades com Clau, sua manicure, ela fechava com cuidado o cigarro de maconha que fumaria logo após o desjejum. Café forte amargo, pão francês com requeijão e suco de manga. O inseparável cardápio para começar bem o dia.

Sabe Clau, preciso te contar. Dia desses tomei o elevador com o Marcos, o novo síndico, e uma vizinha nova. Menina, os olhos do administrador, dotados de desejo próprio, viajaram até o decote, de onde vislumbraram as terras excêntricas trilha abaixo, repletas de prazeres proibidos*. Claudete, santa, que menina! Uma pena que o Carlinhos não goste desse roquenrrol, viu. Mas eu não perdi tempo. Fiz amizade com a lindinha.

E que cabelos negros! Olhos de pantera, de rainha. Bem, você não faz ideia do colar que ela usava. Daí que começou tudo. Vou te contar!

Margarete virou-se para sair da corrente de vento que, provavelmente, vinha da janela do banheiro. Depois de duas ou três tentativas demoradas, em que quase queimou os dedos, ela acendeu o bastão e tragou. Agora o dia começava de fato.

Ansiosa, Margarete chega à janela da lavanderia, de onde consegue ver a área de serviço do 42. Espera alguns minutos, observando. E dito e feito, na mosca. Nove e meia, abre-se a porta. Lá está ela, a vizinha do colar kriptonita, a buscar seus sapatos. Pele branca neve. Boca desenhada pelos arcanjos mais poderosos. A própria princesa Psiquê encarnada novamente, de uma graça emanada da mais sagrada divindade.

A nobre hóspede do quarto andar não fumava. Mas acompanhava Margarete no chá da tarde. Elas se tornaram amigas, um relacionamento quase próximo ao de avó e neta. Uma confidente da outra. O negócio inicial, o comércio de colares, em especial o de pedra verde ou vermelha, ficava quase que em segundo plano. As reuniões serviam mesmo para revelações. Sonhos, fofocas, planos, desabafos.

Pela primeira vez, Margarete entendia que era possível ter uma vizinha boa, que não fosse uma bruxa medieval prestes a amaldiçoá-la. A garota, sozinha que era, encontrou em Margarete o parente perdido, a tia, a mãe, a avó que lhe faltava na vida, peça erudita e escassa do seu quebra-cabeça.

Pena que Carlinhos não gostasse da fruta. Margarete, carente de filhos, lamentava o quanto o sobrinho perdia por não valorizar tal comissão de frente. A porta de entrada para vasculhar a bateria. Pois bem, não há mais carnavais como os de antigamente, pensa a velha no seu café da manhã.

O importante é que, assim como as conversas quase familiares entre as duas, o negócio de colares também evoluiu. Elas, juntas, montaram uma lojinha no shopping da orla. À noite, quem cuida do empreendimento é a bela jovem, uma quase vampira que não combina com o calor do litoral, mas brilha nos dias de lua grande refletida nas águas da lagoa. E como chama freguesia. Mas quem fatura mesmo é Margarete. Ela é quem recebe as clientes desde cedinho. Imagine Margarete logo depois do café da manhã! Vende colar a rodo.

(por Tia Antônia)

* Trecho adaptado, extraído e emprestado do livro “A Harmonia do Mundo”, de Marcelo Gleiser.

A fodo também é um pedaço de uma imagem roubada, mas autorizada.

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