O dinamarquês em Vegas

xadrez

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Entrei. Na minha frente um dinamarquês fácil de confundir-se com alguém que poderia ser o presidente norte-americano – inglês impecável e português manco. Sem a veste típica, elegante e tradicional do trabalho, talvez ele pudesse se passar pelo velho viking que lhe habita o sangue escandinavo. Não pelo aspecto físico dos músculos, mais pela altura e pelo olhar fixo, azul como a Terra.

Iniciamos a reunião como a rotina pedia. Eu cuidava da comunicação interna da companhia e estava diante do presidente da subsidiária local. Mas o assunto dispersou-se naquele dia, naquele momento. Talvez fosse o prenúncio de que algo bem diferente estava por vir. E veio.

Ele começou a falar da família, mirando um porta-retratos preenchido com a foto de três meninas e uma mulher, tão branquelas quanto todos os membros de sua família. Ficamos uma hora jogando conversa fora. Conversa fiada e afiada.

Da família, o bárbaro passou a alfinetar os executivos que se acham raros. Que acham que são melhores do que os outros, isso e aquilo. Soberbos. Ele, nesse ponto, fez um recorte importante. “Todo mundo tem algo diferente, algo peculiar, porém ninguém sabe tudo.” E me perguntou: “E você, no que você se acha bom?”

Temi, mas fui sincero. “Jogo xadrez”, respondi. Veio o silêncio de um minuto que mais parece uma década. Olhos nos olhos. Sangue em ebulição.

Parecendo menos surpreso do que estava, ele confessou que se não fosse presidente de uma multinacional, se não estivesse estudado negócios em Stanford e tudo mais, teria jogado xadrez.

Disse ainda que não estaria estampado no arquivo de fotos da grande corporação industrial ou em revistas mundiais, nem ilustrando o editorial de anuários que faziam os olhos dos acionistas brilharem e suas coleções de barcos aumentarem. Estaria, por outro lado, em outras listas de sucesso, como a dos mais impressionantes enxadristas.

Algo perto do pioneiro, o padre espanhol Ruy López. Ou do primeiro campeão, o tcheco Wilhelm Steinitz. Vivaz tão quanto o incrível François-André Danican Philidor, francês que se manteve no topo por meio século. Ou similar ao surpreendente jovem soviético Mikhail Botvinnik e ao efêmero estadunidense Paul Morphy. Quem sabe genial e inesquecível como o russo Garry Kasparov? Ou até mesmo meteórico e importante como indiano Viswanathan Anand.

O dinamarquês era foda, segundo ele. Resolvemos jogar, a pedido dele.

Foi então que ele tirou o jogo de dentro de uma estante escura, segura por chaves. À nossa frente, reluzia um genuíno jogo de tabuleiro e peças Dubrovinik, de madeira choupo-branco. Para beber, chá. Que a assistente presidencial providenciou em poucos instantes. Chá preto, acompanhado por pebernodder, uma espécie de mantecal – dinamarquês, é claro.

Arrancamos unhas e dentes. Gelo na espinha. Espadadas no peito, machados na cabeça, membros espedaçados. Perdemos muita água e sangue. A Terra tremeu naquela luxuosa sala, sob o som encantador de violinos que era reproduzido por meio de uma pequena vitrola vintage.

Cheque-mate. Eu disse.

Ele olhou para mim com clemência. Estávamos na sala “Vegas”, como quis o destino, sempre preocupado com os detalhes – as salas da empresa recebiam nomes de lugares. Apontando para a plaqueta que indicava o nome da sua sala, ele pronunciou suas últimas palavras, em voz mediana. “What Happens in Vegas, Stays in Vegas”.

(por Mauro)

Foto: Sebastian Wendowski

 

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8 comentários sobre “O dinamarquês em Vegas

  1. Quando eu era obrigada a lidar com os granfinos do meu antigo emprego eu sempre conseguia incomoda-los de alguma maneira, porém eles queriam a todo custo se sobressair; Até quando certa eu costumava abrir mão da razão pra alimentar o ego de pessoas que não aprenderam a conviver com pequenas derrotas. As vezes faz bem deixar cada um com suas prioridades na vida, pra mim certas vitórias nunca tiveram valor… mas por um jogo de xadrez eu metia a porrada nesse carra, sou fissurada em jogar haha

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